segunda-feira, 10 de abril de 2023

Eu Poderia Ter Te Amado

             




            Era o último dia do mundo, assim como havia sido o dia anterior. E como no dia anterior, não acredito que tenha feito nada além do que podia: trabalhei o que pude trabalhar, dormi o que pude dormir e comi o que pude comer, mas não consegui jogar o que pude jogar. Afinal, você havia chegado.

            E o lance sobre você é que você foi feita por Deus para mim. Disso tenho certeza absoluta. Afinal, tenho uma treta rolando com Deus há muitos e muitos anos, a qual ele joga um monte de merda na minha vida enquanto tento não dar pra ele o gostinho de que perdi. É um balanço muito complexo, pois ele também não pode ir além. Estamos falando de um ser onipotente aqui. Ele precisa manter um fino e equilibrado balanço de poder entre sua potência destrutiva total e meu livre-arbítrio. Mas falávamos de você.

            Começando com o óbvio, ou seja, o físico, você reúne vários gostos meus. É morena, gorda, tatuada (adoro gibi), metaller, tem um gol -- carro de mulher gostosa -- e nunca lava ele. E com o tempo só pude me encantar ainda mais com as suas atitudes: cuida bem da avó, curte bichos na pegada de querer resgatar todos na rua, trata bem motoboy e ainda por cima você namora esquisitos.

            Então por quê não eu?

            Lembro como se pudesse ver na rua ainda o dia que ele chegou. Muito burro, não soube achar a sua casa, então você teve que sair 22h da noite pela vizinhança pra achá-lo, de moletom e roupa rasgada, parecendo um imbecil. Sua avó já havia ido dormir, religiosamente no mesmo horário, e rapidamente pude perceber o que aconteceria. Não julgo, pois eu na sua condição teria feito o mesmo. E na minha situação estava fazendo muito pior.

            Mas eu parei. E você não. Como me foi dolorido ver tão de perto o nascimento de tudo isso, as risadas, os fins de semana que logo viraram o dia-a-dia... Logo eu, um eterno advogado do amor, tão desgostoso pela felicidade alheia. Às vezes gosto de pensar que Machado de Assis me entenderia, mas no fim das contas, sei que o único que corresponde ao meu amargor é Bentinho. Aquele filho da puta.

            Um dia o ouvi te xingar. Coisa baixa mesmo. Um tipo de homem assim não merece nem a mãe. E vocês unidos pelo amor maior. O único que supera a própria morte. Bom, não demorou muito para que vocês se separassem, você à enfrentar todo o estigma da jovem inconsequente que escolheu errado. Ele, francamente, nós sabemos. Escondendo tudo direitinho logo logo estaria por cima, como um dia já esteve ao seu lado. Se nem no fim do mundo o mundo acabou, imagina sua desgraça.

        Deus sabe que eu poderia ter te amado. E ter-lhe dado todas as músicas e ensaios, pinturas e poemas que me restam. Ter te ouvido sempre que quisesse falar, te falar sempre que quisesse me ouvir; partilhar contigo todos os desafios, celebrando as suas vitórias e na mesma medida me compadecendo nas suas derrotas. Dando colo sempre que necessário. Te levantando sempre que preciso. É uma pena.